Sunday, June 29, 2014

Na marcha fúnebre...

No mesmo modo do post anterior, sirvo agora um poema meu. Aqui vai:

A MÚSICA DA MORTE

Já passaram por nós as frias aves,
aprendemos a música da morte.
Ao princípio escurece, um arrepio
vem toldar a memória sobre a pele
e a sombra que deixámos faz-se leve
diferença como eco ou na paisagem
turvo matiz que inquieta de repente:
tudo o que irá esquecer nossa passagem
nos vem olhar agora frente a frente.
Da morte aqui passaram frias aves,
como nuvens sem mar ou mar sem naves.

(de Outras Canções, Quetzal, Lisboa, 1998)


Saturday, June 28, 2014

Pavese

Ando a escrever sobre a poesia e a morte, para uma encomenda tão honrosa quanto funérea. Deixo-vos  pois aqui um poema fundamental de Pavese, em italiano e tudo:

Verrà la morte e avrà i tuoi occhi-
questa morte che ci accompagna
dal mattino alla sera, insonne,
sorda, come un vecchio rimorso
o un vizio assurdo. I tuoi occhi
saranno una vana parola,
un grido taciuto, un silenzio.
Così li vedi ogni mattina
quando su te sola ti pieghi
nello specchio. O cara speranza,
quel giorno sapremo anche noi
che sei la vita e sei il nulla
Per tutti la morte ha uno sguardo.
Verrà la morte e avrà i tuoi occhi.
Sarà come smettere un vizio,
come vedere nello specchio
riemergere un viso morto,
come ascoltare un labbro chiuso.
Scenderemo nel gorgo muti.

CESARE  PAVESE


Um poema de Fernando Echevarria

Os vivos ouvem poucamente. As plantas, 
como o elemento aquático domina, 
são dadas à conversa. A menor brisa abala 
a urna de concórdia estremecida 
que, assim, sensível, se derrama 
e é solidão solícita. 
Os vivos não ouvem nada. 
Mas, havendo acedido a essa malícia 
de experiência cândida, 
os mortos deixam que o ouvido siga 
o fluvial diálogo das plantas 
umas com outras e todas com a brisa. 
Melhor ainda. Quando, nas noites cálidas, 
as plantas se sentem mais sozinhas, 
os mortos brincam à imitação das águas 
inventando palavras de consonâncias líquidas. 
E esse amoroso cuidado de palavras 
a urna de concórdia vegetal espevita 
até que, a horas altas, 
a noite, os mortos e as plantas 
caiam no sono duma luz solícita. 

Fernando Echevarría, in "Sobre os Mortos"

Friday, June 27, 2014

Um rapaz de província

Eu gosto dos jantares de província, em Trás-os-Montes ou na Alsácia,
onde todos sabem tudo das pequenas vidas
em redor e tudo se diz entre sub-entendidos de traço largo,
aonde finalmente vem coalhar toda a má língua
no cimo do leite da ternura humana.
Eu sou um rapaz de província.
Eu podia ter tido um ensino de excelência no tempo de Salazar, sabiam?
E não obstante escolhi ficar na província, nessas terras onde hoje
já ninguém me conhece (e porque haviam de me conhecer?).
Após um bom e bem bebido jantar na província alsaciana,
onde tanto mal se disse de Paris, Senhor!, à esquerda e à direita,
senti-me regressar à pequena cidade do Norte onde não sei se fui feliz,
mas onde aprendi que, das nossas capitais,
nós, provincianos, só podemos desconfiar, cuidar-nos
ou finalmente sorrir.


Saturday, June 21, 2014

E já Keynes, em 1940...

« … j’ai indiqué que sous de nouveaux auspices, l’Allemagne sera autorisée à renouer avec cette part de leadership économique en Europe centrale qui découle naturellement de ses qualifications et de sa position géographique. J’imagine mal comment le reste de l’Europe pourrait espérer une reconstruction économique effective si l’Allemagne en est exclue et demeure une masse purulente en son sein ; une Allemagne reconstruite renouera nécessairement avec son leadership. Une telle conclusion est inévitable, à moins que nous n’ayons l’intention de confier la tâche à la Russie » (ibid. 9).
Comme nul ne l’ignore, la tâche ne fut pas confiée à la Russie, et l’Allemagne exerce du coup le leadership dont Keynes considérait qu’il lui était « naturel », alors même que Londres était chaque jour défigurée davantage par le Blitz et que la Bataille d’Angleterre durerait encore près de six mois.
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Keynes, John Maynard, « Proposals to counter the German ‘New Order’ »1940, Donald Moggridge (sous la dir.) The Collected Writings of John Maynard Keynes, Volume XXV, Activities 1940-1944, Shaping the Post-war World : the Clearing Union. London : Macmillan, 1980 : 7-10.

(tirado do blog de Paul Jorion)

Thursday, June 19, 2014

A vingança póstuma


Velázquez "La Rendición de Breda"

Tuesday, June 17, 2014

Futebol

Douanier Rousseau

Monday, June 16, 2014

Hospital de Santa Maria, esperando

O tempo que se passa em hospitais
faz da espera tormento e acerbo espinho:
sequer delicioso, quanto mais
seu pungir nos deixar a meio caminho.

Aguardamos notícias e entretanto
portas se fecham sem chamar por nós.
Os versos na cabeça duram tanto!
Garrett, tu já nem dos meus avós!

Mas fazes companhia nesta espera,
"delicioso pungir de acerbo espinho",
e no que penso há versos e eu rimo,

sabendo que o soneto é uma quimera,
(este então não se safa, coitadinho):
pois ao Garrett o deixo como mimo.





Sunday, June 15, 2014

Parem e leiam, que isto é grande poesia


De Herberto Helder, "A Morte sem Mestre"

Saturday, June 14, 2014

A morte com mestre


PAUL CELAN TODESFUGE
Black milk of daybreak we drink it at sundown
we drink it at noon in the morning we drink it at night
we drink and we drink it
we dig a grave in the breezes there one lies unconfined
A man lives in the house he plays with the serpents he writes
he writes when dusk falls to Germany your golden hair Margarete
he writes it and steps out of doors and the stars are flashing he whistles his pack out
he whistles his Jews out in earth has them dig for a grave
he commands us strike up for the dance

Black milk of daybreak we drink you at night
we drink in the morning at noon we drink you at sundown
we drink and we drink you
A man lives in the house he plays with the serpents he writes
he writes when dusk falls to Germany your golden hair Margarete
your ashen hair Shulamith we dig a grave in the breezes there one lies unconfined.

He calls out jab deeper into the earth you lot you others sing now and play
he grabs at the iron in his belt he waves it his eyes are blue
jab deeper you lot with your spades you others play on for the dance

Black milk of daybreak we drink you at night
we drink you at noon in the morning we drink you at sundown
we drink you and we drink you
a man lives in the house your golden hair Margarete
your ashen hair Shulamith he plays with the serpents

He calls out more sweetly play death death is a master from Germany
he calls out more darkly now stroke your strings then as smoke you will rise into air
then a grave you will have in the clouds there one lies unconfined

Black milk of daybreak we drink you at night
we drink you at noon death is a master from Germany
we drink you at sundown and in the morning we drink and we drink you
death is a master from Germany his eyes are blue
he strikes you with leaden bullets his aim is true
a man lives in the house your golden hair Margarete
he sets his pack on to us he grants us a grave in the air
he plays with the serpents and daydreams death is a master from Germany
your golden hair Margarete
your ashen hair Shulamith 

Trans. Michael Hamburger

Tuesday, June 10, 2014

Homenagem a Camões

Não mais, Musa, não mais que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.

(Os Lusíadas, Estrofe 145, canto 10)


Monday, June 9, 2014

Homenagem a Herberto Helder

Antes de criticar qualquer decisão de um poeta
sobre a edição, parca ou lauta, da sua obra,
lembre-se, Senhor Kappus do que dizia Eliot:
cada poema é um epitáfio.
Lembre-se que a poesia
por querer dizer o desejo de durar
no fim apenas sabe arder
e nenhuma faca, nenhuma, corta o fogo.
Toda a poesia fala da morte, senhor Kappus,
por isso o proíbo, ouviu, o proíbo,
de criticar qualquer decisão, seja ela qual for,
que um verdadeiro poeta possa tomar sobre a sua obra.


Senhor Poeta, a morte é o mais eficiente dos mercados,
pois perdemos sempre, sabemo-lo à partida:
e não obstante continuamos a investir
como doidos furiosos, continuamos  a dar óleo à máquina
que nos vai fazer em picadinho ou em pequenas rodelas
de um manuscrito tão fino que não caberá senão
no mais aceso dos fornos crematórios.
E ainda me fala de verdades?

Saturday, June 7, 2014

Como ter boas recensões na imprensa: o método de Stendhal


"Entre le 18 octobre et le 3 novembre 1832, sous le pseudonyme de D. Gruffot Papera, Stendhal écrit à son ami le comte Salvagnoli.   Salvagnoli  souhaitait rédiger un compte-rendu du Rouge et le Noir pour le magazine italien Antologia (magazine qui cessa finalement de paraître avant que Salvagnoli y publie son texte).  Stendhal envoie donc au comte quelques notes en vue d'un éventuel article.  Il explique qu'il cherche avant tout à rendre le lectorat sensible à la véracité, au naturel, de ce livre de Monsieur de Stendhal. "Le naturel dans toutes les façons dans le discours est le beau idéal auquel M. de S. revient dans toutes les scènes importantes de son roman"

(Adam Thirlwell, "Le livre multiple",  éditions de l'Olivier,  Paris,  2014, p. 57) 

Monday, June 2, 2014

O Amor aos Sessenta

O AMOR AOS SESSENTA
Isto que é o amor (como se o amor não fosse
esperar o relâmpago clarear o degredo):
ir-se por tempo abaixo como grama em colina,
preso a cada torrão de minuto e desejo.
Ser contigo, não sendo como as fases da lua,
como os ciclos de chuva ou a alternância dos ventos,
mas como numa rosa as pétalas fechadas,
como os olhos e as pálpebras ou a sombra dos remos
contra o casco do barco que se vai, sem avanço
e sem pressa de ausência, entre o mito e o beijo.
Ser assim quase eterno como o sonho e a roda
que se fecha no espaço deste sol às estrelas
e amar-te, sabendo que a velhice descobre
a mais bela beleza no teu rosto de jovem.

Alberto da Costa e Silva
(Prémio Camões 2014)